06/04/2024 às 15:35

Entrevista com Augusto Licks (ex-Engenheiros do Hawaii)

103
12min de leitura

Entrevistei o lendário Augusto Licks, ex-guitarrista do Engenheiros do Hawaii. Conversamos sobre o show com Carlos Maltz que acontecerá no dia 21 de abril em Porto Alegre e sobre os temos dos Engenheiros. Boa leitura!

A reunião de Augustinho Licks e Carlos Maltz no dia 21 de abril será histórica. Como estão os ensaios agora que já está quase chegando essa aguardada data?

Tudo muito bem encaminhado, estamos todos vivendo intensamente essa reta final pro 21 de abril. Trocamos ideias diariamente sobre detalhes de arranjos, e de escolhas que precisamos fazer, da mesma forma como fazíamos quando éramos Engenheiros do Hawaii, a banda. Os ensaios presenciais vão rolar ao longo da semana que antecede ao show. Eu me deslocarei daqui do RJ, o Carlos de SC, pra encontrarmos o pessoal dos Engenheiros Sem CREA em Porto Alegre.

Você pode dar um spoiler de quais instrumentos, efeitos e amplificadores você vai levar para o show? E quais músicas estão sendo as mais desafiadoras de relembrar na guitarra?

O público que estará no Bar Opinião dia 21 inclui fãs que há décadas esperam por uma reunião assim, gente que viajará de várias partes do Brasil, juntando-se aos de Porto Alegre e aos do interior do RS. Então eu prometo que eles irão rever um instrumento que lhes é muito familiar, pois seria uma desfeita chegar lá com alguma "última novidade". Já em relação a amps e efeitos, inevitavelmente hoje é uma realidade diferente de 31 anos atrás quando viajávamos toda semana com excesso de bagagem e os equipamentos ficavam guardados em depósito. Em compensação, a tecnologia avançou em alguns aspectos, oferecendo algumas alternativas que não existiam ou não eram satisfatórias naquela época. Na depuração pro set list que tocaremos no 21 eu precisei levar isso em conta. Logo no início do ano tratei de buscar soluções para traduzir da melhor forma possível a essência do que fazia na época da banda. Precisei comprar alguns equipamentos de última geração, que têm alguns detalhes importantes que os similares daquela época não tinham, e que fazem muita diferença pras condições de hoje. Como resultado, consegui moldar um kit de efeitos que me entrega todos os timbres da fase GLM dos Engenheiros do Hawaii. Com relação a músicas mais desafiadoras pra lembrar, isso não foi problema porque tenho uma memória razoável, então foi como andar novamente numa bicicleta. Claro que venho praticando tudo porque não dá pra dispensar o exercício dos dedos, e eles felizmente continuam em forma.

Os Engenheiros eram um trio. Como a personalidade de cada um de vocês contribuía para atmosfera geral da banda? Por exemplo, um era mais piadista, o outro mais reservado...

Éramos personalidades bem diferentes, o que não facilitava a convivência, mas ao mesmo tempo essas diferenças eram combustível criativo para a parte musical que resultava, na composição, nos arranjos, solos, introduções, e também para as soluções gráficas e visuais. Claro que isso exigia de todos alguma reserva mínima de tolerância em relação ao que não era preferência própria. Cada um tinha defeitos e qualidades pessoais mas, colocando na balança, o resultado era um equilíbrio, mesmo que tenso. Afinal éramos uma banda, uma coisa muito mais dinâmica do que a carreira solo de alguém com músicos contratados.

Em entrevista ao Corredor 5, Humberto Gessinger deu a entender que uma barreira para se reunir com você e Maltz é que ele gosta sempre de mudar os arranjos das canções originais. De sua parte, o que você acha de um show com o GLM completo fazendo alterações nos arranjos dos clássicos dos Engenheiros?

Não assisti à entrevista, não poderia comentar. De qualquer forma, nós sempre mudávamos arranjos em relação a originais, é só observar nos álbuns que gravamos e em vídeos de shows que fizemos, tem músicas com duas e até três versões diferentes, pegue por exemplo "Refrão de Bolero", original do álbum "A Revolta dos Dândis", depois as versões que tocamos no Palace, no Hollywood Rock, no Rock In Rio, e pra arrematar a do FGCA na sala Cecília Meirelles com a Orquestra Sinfônica Brasileira. Isso nunca foi nenhum problema, era um processo natural porque costumávamos amadurecer as canções na estrada, já que em estúdio gravávamos muito rapidamente e às vezes sentíamos necessidade de melhorar alguma coisa ou outra pros shows, nem tudo que funcionava em estúdio funcionava igual nos palcos.

Existem muitos jovens hoje em dia que não viram a formação GLM dos Engenheiros, mas curtem o som da banda. O que você acha dessa reunião com Maltz e uma possível futura reunião com Gessinger mostrar para as gerações mais novas o poder desse trio?

Essa reunião L & M e Engenheiros Sem CREA é a materialização possível do desejo de muita gente que conheceu Engenheiros do Hawaii como banda, ao vivo, e também de quem só conheceu depois, através das gravações e vídeos. É um show GLM, com músicas que tocávamos durante os 7 anos em que estivemos juntos. Vai faltar o "G" ? Sim, fazer o que, infelizmente o Humberto nunca se manifestou a favor de reunir a banda. O Carlos é que durante muitos anos se esforçou pra reunir, e só eu aceitei conversar. O Sandro Trindade, dos Sem CREA, é uma pessoa admirável que se comunica com todos, e em anos recentes convidou pra shows o Marcelo Pitz, baixista original da banda, o Carlos, e também eu no ano passado. Então, esse show do dia 21 de abril acontece por obra do Sandro, pela reaproximação que ele proporcionou junto com a produtora Abstratti, e pelo simples fato de que ainda estamos vivos e com saúde pra tocar, por quanto tempo não sabemos. Recentemente foi lançado um longa-metragem nos EUA para o qual compús música original, "Queen Of Knives", e esse filme tem um "tag" de mensagem interessante: "Nunca se é velho demais pra crescer". É sempre possível sim, crescer, e reavaliar o que aconteceu no passado, e essa é uma chave pra entender como e por que vai ter o show de 21 de abril, que quase ninguém acreditava que pudesse acontecer.

Na época do “Acústico MTV” dos Engenheiros você não estava mais na banda, mas lá estavam presentes hits que você ajudou a tornar clássico, como “Infinita Highway”. Você chegou a conferir alguma coisa desse disco? Caso sim, o que achou? O que acha desse formato de rock acústico?

Depois que fui tirado, não acompanhei mais nada de Engenheiros do Hawaii, não teria por que, não fazia mais sentido, a minha vida até então era toda em função da banda e, de repente eu não estava mais. Fiquei com a sensação forte de que a partir dali Engenheiros do Hawaii não existiria mais como banda, mesmo que o nome continuasse sendo usado por provável exigência da gravadora e do mercado, até porque na minha saída eu tinha sido informado de que o Humberto iria fazer uma outra banda. Isso tá relatado em detalhes na biografia "Contrapontos", escrita por Fabrício Mazocco e Silvia Remaso. Mas são águas passadas, é história, ficou lá atrás. Sobre o formato "rock acústico" em si, entendo que era uma coisa proporcionada pela presença da MTV naquela época, algo a mais que artistas podiam oferecer, um "produto" derivado. Mas eu pouco ou nada poderia opinar a não ser sobre o nosso próprio FGCA, que na verdade foi um "semi-acústico" pois utilizamos guitarras semi-acústicas, e eu utilizei na minha L4 vários efeitos que eram típicos de guitarra elétrica, não de instrumentos acústicos.

Sabemos que os Engenheiros eram “outsiders” da cena do rock nacional e não se relacionavam de maneira estreita com as outras bandas famosas. Mesmo assim, imagino que você tenha encontrado alguns desses outros ícones da música seja em festivais, aeroportos ou bastidores de programas de TV. Você tem alguma história em comum com nomes como Cazuza, Renato Russo ou Herbert Vianna? Pode compartilhar alguma delas?

Existia um auto-confinamento, que na minha opinião passava por um misto de insegurança pessoal, tentiva de se diferenciar, e falta de oportunidade. Que eu saiba, era raro o Humberto se comunicar pessoalmente com gente de outras bandas, a não ser pra alguma finalidade prática, participação em show ou gravação. Já o Carlos transitava mais tranquilamente, conversar sempre foi uma qualidade dele, falava pessoalmente com o pessoal do Legião, por exemplo. Pra mim, o que sobrava era a tal da falta de oportunidade, sobrecarregado que sempre vivia tentando resolver as constantes encrencas de ser guitarrista num trio. E teve momentos esquisitos em que parecia existir algum "cuidado" pra não me facilitar contato com gente de fora. Mesmo assim, tive alguns encontros esporádios em ambientes de estúdio com os Garotos da Rua, com o Lulu Santos quando comecei a usar o efeito harmonizer em 89, o Frejat que me deu algumas dicas técnicas de estrada, e certa vez mostrei meu violão pro Dado Villa-Lobos, ele chegou a gravar com ele num dos discos do Legião. E às vezes encontrava o Bruno do Bikini Cavadão em sessões do cinema São Luiz no Largo do Machado. Antes, aqui no Rio, eu tinha conhecido o excelente guitarrista Torcuato Mariano que tocou com Lobão, e também o Marcus Lyrio dos "Inimigos do Rei", além de Luciano Alves, Tavinho Fialho e o batera Élcio Cáfaro, com quem tinha tocado em 86 na tournê de Kleiton & Kledir, além de outros conterrâneos gaúchos como o Carlos Martau da banda instrumental Cheiro de Vida. Muitos anos depois da banda, tive um agradável encontro com o Herbert Vianna, que foi de muita gentileza e carinhosamente tirou fotos com minha filha. Mais recentemente conheci o Luiz Pissutto da ABQNE, o Zeca Baleiro, o barítono Leonardo Neiva, e o baixista Dudu Lima. Tem muita gente boa nesse mundo, o difícil é ter tempo e momento pra conseguir alimentar as amizades.

Nos anos 1990, você deixa os Engenheiros e sai um pouco de cena. O rock nacional, entretanto, continuou dando origem a bandas como Raimundos, Skank e Charlie Brown Jr. Você acompanhou de perto essa cena dos anos 1990? Qual sua opinião sobre o rock brasileiro nesse momento?

Nunca acompanhei de perto, a rotina não me possibilitava, mas captava aqui e ali alguma coisa das canções deles, que me passavam a sensação de que o rock BR ainda respirava, numa nova geração. Mas o que tinha acontecido antes, desde meados dos 80, tinha se desenvolvido com muita força, uma chama que ardeu com muita intensidade pois o rock era mainstream, o mercado investia pesado nele, como não tinha acontecido por exemplo com bandas dos 70. E tudo que arde com muita intensidade tende a encontrar depois alguma curva descendente pois, como tudo no universo, nada é estático. Mas esse pessoal que você citou já tá até em fase de reuniões, já transcorreu um bom percurso nas suas respectivas biografias. Hoje em dia, o rock nacional ainda se ressente de não ser mais mainstream e do "generation gap" em que jovens dizem que "é coisa de velho, do meu pai, do meu avô". Os jovens de qualquer época assimilam o que lhes estiver ao redor, e nos tempos recentes tivemos bastante coisa ao redor que não é rock. Só que existe uma diferença entre rock e outros gêneros, que é a de uma necessária atitude juvenil, justamente em relação ao que estiver ao redor. Eu acredito que não vai demorar pra termos novas gerações roqueiras, pois guitarras elétricas e bateria são instrumentos orgânicos e populares, convidam a serem manipulados por mãos que não sejam necessariamente treinadas, e isso vai acontecer novamente se e quando algumas dessas mãos estiverem alinhadas com cabeças pensantes, e dessa soma surgirem depoimentos musicais que não sejam a mera repetição do que já aconteceu antes, e claro, não sejam ressonantes com o continuismo de uma realidade presente. Eu sempre comparei não apenas rock mas também outras formas artísticas não conformistas com alpinistas e mergulhadores. Uns se jogam pra cima, outros mergulham em profundidades, e em ambos os casos, com todos os riscos, existe o esforço de se afastar da superfície.

Muitos dizem que o rock brasileiro dos anos 1980 não apresentava grandes instrumentistas técnicos ou virtuosos. Você sempre prezou por esse lado mais “nerd” da música e sempre conheceu muito sobre equipamentos. O que você acha desse preconceito com os músicos de rock no Brasil dos anos 1980 e quais desses músicos você destacaria como grandes virtuosos em seus instrumentos?

Quem diz essas coisas é porque não tem discernimento, não entendeu a diferença entre quem toca em banda e quem toca por contrato remunerado. São duas situações musicais legítimas, mas diferentes. Um artista solo tem um depoimento pessoal a oferecer, e se arvora de instrumentistas de sua preferência pra dar conta do recado, e confortavelmente procura se acercar de que serão músicos tecnicamente muito bons e capazes de executar o que deles se espera. A banda, por sua vez, é "o" próprio artista, só que um artista formado por mais de duas pessoas, independentemente de serem instrumentistas muito bons ou não, pois o que vale é a capacidade de todos produzirem um depoimento sonoro convivendo entre si, numa relação que não é exatamente profissional e nem sempre é confortável. É claro que, em geral, existem instrumentistas muito mais proficientes tecnicamente do que os que tocam numa típica banda de canções de rock, exceto talvez quando for uma banda formada justamente por instrumentistas virtuosos, e temos exemplos históricos desde o Deep Purple há mais de meio século atrás. Mas mesmo esse tipo de formação mais virtuosa terá alguma conta a pagar, terá seu próprio "cobertor curto", pois ao tratar de cobrir melhor os pés pode deixar a cabeça descoberta. A maior qualidade técnica instrumental pode não deixar muito espaço pra uma qualidade literária, ganha-se e perde-se. Além disso, existe uma dificuldade natural de instrumentistas virtuosos ao lidarem com a simplicidade, muitas vezes esta não os satisfaz e muitas vezes a simplicidade é justamente a marca que define determinadas bandas ou artistas solo. Não sei se foi mesmo Leonardo da Vinci que disse, como se lê por aí na internet, mas é definidora a frase "a simplicidade é a máxima sofisticação". Música, incluindo a música rock, não se mede pela quantidade técnica e sim pela qualidade, pelo que resulta de quem a faz, qualquer que seja a limitação, qualquer que seja o virtuosismo. Eu costumo dizer que são tudo "encanamentos" de um tipo ou de outro, e o que importa é o que acontece quando se abre a "torneira". Eu nunca me considerei um virtuoso, precisei fazer um grande esforço pra dar conta de tocar num trio como Engenheiros do Hawaii, de encontrar soluções pros desafios que surgiam em cada uma das canções, e isso incluiu surfar pelas opções da tecnologia, separando o que poderia ser decisivo de coisas que poderiam ser mais do mesmo ou até atrapalhar. A própria limitação do formato trio me ajudava naquele processo, não permitia excessos desnecessários. Mesmo assim eu fazia ao máximo o que estava ao meu alcance, todos fazíamos ao máximo que estava a nosso alcance. Você pergunta sobre virtuosos, existem muitos, poderia citar vários mas o que importa é se a música resultante causa ou não alguma reação pra cada pessoa que a escuta. Eu posso gostar do Tommy Emmanuel, por exemplo, e você não gostar, essa é a beleza da vida, não sermos iguais. Eu costumo brincar que a guitarra elétrica, além de instrumento musical e brinquedo de diversão juvenil, também poderia ser elevada à condição de esporte, uma modalidade olímpica. No meu instagram augustolicks_oficial cheguei a postar sobre um vídeo com o Yngwie Malmsteen em que um narrador brasileiro descreve cada uma das muitas técnicas do guitarrista sueco usando termos típicos de competições, tipo "olha aí um sweep up carpado" ou coisa parecida, e depois "mas vai perder ponto na aterrissagem", linguagem que se ouve em exibições olímpicas. Claro que pra muitos essa técnica em profusão é exatamente o que lhe interessa, mais do que música, e eu quando jovem já tive momentos de fissura nos "mais rápidos do gatilho", mas depois a gente cresce (nunca se é velho demais ...) e consegue separar o que é "ser impressionado por técnica" do que é "ser emocionado por música". Ultimamente, causa furor o italiano Matteo Mancuso, que chama atenção pela sua extraordinária técnica de mão direita, ele não precisa de palheta pra fazer o que outros virtuosos fazem com palheta. Mas aí é de se fechar os olhos, e perguntar: a música que resulta do Mancuso é tão diferente da de outros como Eric Johnson, Steve Vai, Satriani, etc em que o depoimento é tirar tecnicamente o máximo de uma guitarra elétrica? Faz tanta diferença em relação a estes e outros tantos se você não prestar atenção em que ele não usa palheta? Comparando com um guitarrista de rock como o Mark Knopfler, bem mais limitado tecnicamente, em qual dos dois a técnica de não usar palheta resulta numa característica própria de timbre sonoro? Pense aí e tente responder.

Por favor, deixe uma mensagem final! Como você convenceria um fã dos Engenheiros que está indeciso se vai ou não ao show de Porto Alegre? Obrigado!!

Eu que agradeço! Olha, não acho que seja o caso de tentar convencer ninguém de nada. Eu sei que depois de ter sido tirado dos Engenheiros do Hawaii, muita gente naturalmente se ambientou com o que aconteceu dali por diante, passou a ser a referência pros fãs, era o que tinha. Mas quem tem saudades de quando Engenheiros do Hawaii era banda, ou mais jovens que se identificam com aquele período, estes não precisarão ser convencidos, se tiverem condições acredito que naturalmente irão ao encontro do que há muito esperavam no show de 21 de abril no Bar Opinião em Porto Alegre. Existe muito sentimento acumulado, durante anos e anos, e finalmente essa emoção vai poder se estravasar, um grande reencontro pra muitos, e pra alguns talvez um desabafo. Mais do que um show, vai ser um acontecimento, por uma causa maior que é: ter consideração por quem nos quer tocando juntos no palco.

06 Abr 2024

Entrevista com Augusto Licks (ex-Engenheiros do Hawaii)

Comentar
Facebook
WhatsApp
LinkedIn
Twitter
Copiar URL

Tags

augusto licks engenheiros do hawaii